MENSTRUAÇÃO
Penso fazer uma antologia de textos sobre a menstruação. Nesse livro a fazer-se vai estar a página d' O Conquistador de Almeida Faria, sobre Clara, uma rapariga que pendurava os pensos higiénicos usados numa cerejeira carregada de cerejas. Parece um quadro de Frida Kahlo. Parece uma árvore de Natal. É tão bonito! Pessoa queixa-se de que pouca gente vê a beleza do binómio de Newton. Eu queixo-me de que pouca gente, tanto homens como mulheres, vê a beleza da menstruação. A menstruação é tão bonita como o binómio de Newton, o que há é pouca gente para dar por isso. Para mim é sempre uma alegria muito grande a chegada da menstruação. A menarca aconteceu-me a 19 de agosto de 1972. Lembro-me perfeitamente de ter entornado um jarro de água quente sem querer e ter caído da bicicleta, quase atropelando um homem que me disse isso mesmo "Parece que me queres atropelar!". Depois fui à casa de banho urinar e vi que tinha sangue nas cuecas. Felicíssima dei a notícia à casa. A minha avó Zé e a minha tia Paulina deram-me os parabéns. Disseram "Agora já é uma senhora". A Maria Arminda, a criada, disse "Parabéns por quê? É uma porcaria". A Maria Arminda chamava à menstruação "o pingo". E à vagina "a grila". Penso que é uma pena muito grande haver mulheres (e homens) que têm nojo da menstruação. A publicidade fala d'"os dias difíceis"! São dias maravilhosos. Eu agradeço sempre a Deus as minhas regras de cada vez que elas voltam. Como geralmente no período pré-menstrual me sinto muito deprimida, a chegada da menstruação é o fim da depressão, a libertação. E depois, se acho que vou ter relações, o primeiro dia de regras é o dia de começar a tomar a Diane 35, a minha pílula. O que também é uma coisa boa. A minha tia Vitória, mulher do historiador Oliveira Martins, nunca foi menstruada. Era uma história de mulheres que se contava em minha casa entre as mulheres. Eu, antes de me aparecer a menarca, tinha medo de ser como a tia Vitória. Cada vida é diferente e maravilhosa. E não quero que as mulheres que nunca são menstruadas se achem infelizes. Outra página lindíssima é o poema de Herberto Helder "A menstruação, quando na cidade passava" (in A máquina lírica). Acaba assim: "e pela noite, em silêncio,/a menstruação escorria pela neve." Neste poema aparecem cravos e figos. Uma mulher que nunca experimentou a menstruação ao ler este poema não morre como as Ximenas do Jorge de Sena que "para imaginar faltou-lhes tudo". É horrível pensar que tudo se passou e ainda se passa, às escondidas, com medos, com vergonhas, em sacristias nada sacras. Eu, embora gostasse muito de estar menstruada, tinha medo que os outros soubessem que eu estava menstruada. A minha mãe ainda era do tempo dos paninhos. A Maria Arminda dizia que o lavadeiro quando lavava os panos gritava "Aquelas porcas! Aquelas porcas!" É pena que o lavadeiro não tenha lido outra página da minha antologia pessoal, a de Valéry, de "Diário de Emma, sobrinha do Sr. Teste" (in La jeune parque). Aí se diz que tudo o que sai do corpo é puro, produto elaborado de uma indústria bioquímica muito complexa. Ouvi a minha mãe dizer ao meu pai que eu tinha mudado de idade. O meu pai, como quase todos os homens da sua geração, que tanto têm de republicanos como de fascistas, despreza as mulheres. Não me disse nada. Gostava de ter sido filha do escritor António Lobo Antunes que numa crónica neste jornal (outra página antológica) contava que quando a filha tinha mudado de idade lhe tinha dado um ramo de flores. Parece que as páginas de Anne Frank sobre os tampões ou pensos higiénicos têm sido censuradas. E devia ter sido complicado estar menstruada à sombra dos nazis. Mas nazis são também os que censuraram os tampões de Anne Frank. Isso é completamente ridículo, mas eu achava que se o gonçalvismo triunfasse, deixavam de se vender tampões em Portugal. Armazenei tampões durante o Verão quente de 75. Penso que devo registar isto para a História de Portugal. Com o uso de tampões aprendi mais sobre a minha anatomia até porque aprendi a masturbar-me com prazer.
Adília Lopes, in Público
Penso fazer uma antologia de textos sobre a menstruação. Nesse livro a fazer-se vai estar a página d' O Conquistador de Almeida Faria, sobre Clara, uma rapariga que pendurava os pensos higiénicos usados numa cerejeira carregada de cerejas. Parece um quadro de Frida Kahlo. Parece uma árvore de Natal. É tão bonito! Pessoa queixa-se de que pouca gente vê a beleza do binómio de Newton. Eu queixo-me de que pouca gente, tanto homens como mulheres, vê a beleza da menstruação. A menstruação é tão bonita como o binómio de Newton, o que há é pouca gente para dar por isso. Para mim é sempre uma alegria muito grande a chegada da menstruação. A menarca aconteceu-me a 19 de agosto de 1972. Lembro-me perfeitamente de ter entornado um jarro de água quente sem querer e ter caído da bicicleta, quase atropelando um homem que me disse isso mesmo "Parece que me queres atropelar!". Depois fui à casa de banho urinar e vi que tinha sangue nas cuecas. Felicíssima dei a notícia à casa. A minha avó Zé e a minha tia Paulina deram-me os parabéns. Disseram "Agora já é uma senhora". A Maria Arminda, a criada, disse "Parabéns por quê? É uma porcaria". A Maria Arminda chamava à menstruação "o pingo". E à vagina "a grila". Penso que é uma pena muito grande haver mulheres (e homens) que têm nojo da menstruação. A publicidade fala d'"os dias difíceis"! São dias maravilhosos. Eu agradeço sempre a Deus as minhas regras de cada vez que elas voltam. Como geralmente no período pré-menstrual me sinto muito deprimida, a chegada da menstruação é o fim da depressão, a libertação. E depois, se acho que vou ter relações, o primeiro dia de regras é o dia de começar a tomar a Diane 35, a minha pílula. O que também é uma coisa boa. A minha tia Vitória, mulher do historiador Oliveira Martins, nunca foi menstruada. Era uma história de mulheres que se contava em minha casa entre as mulheres. Eu, antes de me aparecer a menarca, tinha medo de ser como a tia Vitória. Cada vida é diferente e maravilhosa. E não quero que as mulheres que nunca são menstruadas se achem infelizes. Outra página lindíssima é o poema de Herberto Helder "A menstruação, quando na cidade passava" (in A máquina lírica). Acaba assim: "e pela noite, em silêncio,/a menstruação escorria pela neve." Neste poema aparecem cravos e figos. Uma mulher que nunca experimentou a menstruação ao ler este poema não morre como as Ximenas do Jorge de Sena que "para imaginar faltou-lhes tudo". É horrível pensar que tudo se passou e ainda se passa, às escondidas, com medos, com vergonhas, em sacristias nada sacras. Eu, embora gostasse muito de estar menstruada, tinha medo que os outros soubessem que eu estava menstruada. A minha mãe ainda era do tempo dos paninhos. A Maria Arminda dizia que o lavadeiro quando lavava os panos gritava "Aquelas porcas! Aquelas porcas!" É pena que o lavadeiro não tenha lido outra página da minha antologia pessoal, a de Valéry, de "Diário de Emma, sobrinha do Sr. Teste" (in La jeune parque). Aí se diz que tudo o que sai do corpo é puro, produto elaborado de uma indústria bioquímica muito complexa. Ouvi a minha mãe dizer ao meu pai que eu tinha mudado de idade. O meu pai, como quase todos os homens da sua geração, que tanto têm de republicanos como de fascistas, despreza as mulheres. Não me disse nada. Gostava de ter sido filha do escritor António Lobo Antunes que numa crónica neste jornal (outra página antológica) contava que quando a filha tinha mudado de idade lhe tinha dado um ramo de flores. Parece que as páginas de Anne Frank sobre os tampões ou pensos higiénicos têm sido censuradas. E devia ter sido complicado estar menstruada à sombra dos nazis. Mas nazis são também os que censuraram os tampões de Anne Frank. Isso é completamente ridículo, mas eu achava que se o gonçalvismo triunfasse, deixavam de se vender tampões em Portugal. Armazenei tampões durante o Verão quente de 75. Penso que devo registar isto para a História de Portugal. Com o uso de tampões aprendi mais sobre a minha anatomia até porque aprendi a masturbar-me com prazer.
Adília Lopes, in Público