1.23.2012

3ª SESSÃO : OVÍDIO (7)



'Conquistada [Afrodite] pela beleza do jovem, já não cuida da orla
de Cíteros, nem demanda Pafo, rodeada de fundas águas,
ou a piscosa Cnido ou Amatunte, prenhe de metais.
Ausenta-se até mesmo do céu; ao céu prefere Adónis.
Não se afasta dele, só anda com ele; e embora habituada
a comprazer-se à sombra e a cuidar da beleza e a ampliá-la,
vagueia pelas serras, por bosques, por penedos e espinhos,
de veste arregaçada acima dos joelhos à maneira de Diana.
Atiça os cães e persegue presas não perigosas de caçar:
ora lebres que correm aos saltos, ora veados de altas hastes,
ora gamos; esquiva-se, no entanto, aos possantes javalis
e evita os lobos rapaces, os ursos armados de garras,
e os leões que se saciam com a matança do gado.

'A ti, também te avisa para os receares, Adónis, se de algo
podem seus avisos valer. "Sê bravo contra os que te fogem",
assim disse, "contra os audazes a audácia não é segura.
Não sejas temerário com riscos para mim, ó jovem,
nem provoques feras a quem a natureza deu armas;
que a tua glória não me custe caro. Nem a juventude,
nem a beleza, nem o que suscita a paixão comovem leões.
Os ferozes javalis têm raios nas presas recurvas
e a impetuosa raiva dos fulvos leões é tremenda,
raça que eu odeio." 
[...]
E deitou-se sobre a relva
e sobre ele, recostando a nuca no colo do jovem reclinado.
E intercalando beijos no meio das palavras, assim contou:

[...]

'Foge deles, meu querido, e com eles de todo o tipo de feras
que oferecem o peito ao combate e não as costas para a fuga,
para que a tua valentia não seja ruinosa para nós ambos.'

Assim o avisou a deusa; e, atrelando os cisnes, pelos céus
partiu. Porém, a bravura dele vai ao arrepio destes conselhos.
Ora, sucedeu que os cães, farejando um rasto fresco, um javali
fizeram sair do seu covil. Aprestava-se ele a sair da mata,
quando o jovem neto de Cíniras o atinge com um golpe de viés.
De imediato, o feroz javali arranca com o focinho curvo a lança
encharcada do próprio sangue, e persegue o rapaz, que foge,
espavorido, em ânsia de local seguro. Crava-lhe bem fundo
as presas na virilha, prostrando-o, agonizante, na areia fulva.
Entretanto, não chegara ainda a Chipre a deusa de Citeros,
levada pelos ares no leve carro puxado pelas asas dos cisnes,
quando, ao longe, reconheceu os gemidos do moribundo.
Para ali dirigiu as alvas aves. Ao descortinar, do cimo do céu,
o corpo exânime, contorcendo-se na poça do próprio sangue,
lança-se do alto, e ora rasga as vestes, ora arranca os cabelos,
ora lacera o peito com mãos que não eram dignas de o fazer.

"Nem tudo porém ficará sob a vossa lei", diz, queixando-se
contra o destino. "A recordação da minha dor permanecerá
para sempre, Adónis, e a cena da tua morte será repetida
todos os anos, reproduzindo por imitação a minha mágoa.
O sangue será transformado em flor. Pois, se acaso outrora
te foi permitido, Perséfone, transformar um corpo feminino
em perfumada hortelã, ser-me-á, então, agora negado
transformar o herói filho de Cíniras?" Tal dizendo, borrifou
o sangue com um néctar odorífero. Ao ser por este tocado,
aquele inchou, tal como da lama acastanhada costumam
brotar translúcidas bolhas. E a demora não foi maior
que uma hora inteira, quando do sangue desponta uma flor,
com a cor que costumam oferecer as romãs que encerram
os seus grãos sob flexível pele. A sua vida, porém, é breve.
Pois, mal segura e fácil de cair pela excessiva beleza,
arrancam-na os mesmos ventos que lhe dão o nome.'


_______________________________________(X. 529-739)





OVÍDIO.
Metamorfoses, trad.: Paulo Farmhouse Alberto, Cotovia, 2007.