1.22.2012

3ª SESSÃO : OVÍDIO (4)

A Fócide separa a região da Aónia dos campos do Era,
terra fértil, enquanto foi terra. Mas naquele tempo era
parte do mar, uma vasta planura de súbitas águas.
Aí uma alta montanha com dois picos sobe para os astros,
de seu nome Parnaso, e o seu cume ultrapassa as nuvens.
Quando Deucalião (pois todo o resto as águas cobriam)
levado na pequena barca, aqui desembarca com a esposa,
veneram as ninfas da Corícia, divindades dos montes,
e a profética Témis, que então era a senhora dos oráculos.
Homem algum houve melhor que ele, nem mais amante
da justiça, nem outra houve mais temente aos deuses.

Vendo o mundo imenso na transparente água estagnada,
e que de tantos milhares de homens restava só um,
e que de tantos milhares de mulheres só uma restava,
ambos inocentes, ambos devotados crentes nos deuses,
Júpiter dispersou o manto de nuvens, afastando as chuvas
com o Aquilão, e mostra as terras ao céu, o éter às terras.
A fúria do mar cessa. O senhor dos mares, pondo de lado
o tridente, acalma as águas e chama o azulado Tritão,
que emerge à superfície do abismo, os ombros cobertos
de conchas neles nascidas, e ordena-lhe que assopre
no sonoro búzio, e dê, deste modo, o sinal de retirada
às ondas do mar e aos rios. Ele pega na oca buzina,
que desde a ponta da sua espiral se retorce e se alarga,
buzina que, quando é assoprada no meio dos mares,
enche de som as costas que jazem sob cada um dos Febos.
Também agora, quando tocou a boca molhada do deus,
de barba a pingar, e, soprada, ela soou, como ordenado,
a retirar, ouviram-na todas as águas da terra e do mar;
e todas as águas pelas quais foi escutada ela travou.
Agora o mar tem litoral, o leito acolhe o rio, mesmo cheio,
[as torrentes descem e vêem-se despontar os montes,]
emerge a terra, crescem os montes, decrescendo as águas.
E após um longo período, as árvores exibem os cimos
desnudados, carregando o lodo deixado nas ramagens.

O mundo fora devolvido. Quando Deucalião o viu, vazio,
as terras desertas, imersas num silêncio profundo,
rebentaram-lhe as lágrimas. E assim se dirigiu a Pirra:
'Ó minha prima, ó esposa, ó mulher, a única sobrevivente,
a quem me liga a mesma estirpe, a origem de nossos pais,
que depois o leito a mim uniu e agora unem os perigos,
das terras, de todas quantas o nascente e o acaso vêem,
nós dois somos a população; o resto os mares possuem.
E ainda não podemos estar com toda a certeza confiantes
na nossa vida: as nuvens ainda me aterrorizam o coração.
Qual seria agora o teu estado de espírito, se sem mim
à morte tivesses escapado, ó pobrezinha? Como sozinha
poderias suportar o medo? Quem te confortaria na dor?
Pois eu, acredita, se o mar também te tivesse tragado,
ter-te-ia seguido, ó mulher, e o mar ter-me-ia também.
Oh! se eu pudesse, com as artes de meu pai, restaurar
os povos e moldar as terras, e nelas instilar vida!
Agora, o género humano sobrevive em nós dois apenas
(tal decidiram os deuses): restamos modelos de homens.'

Assim dissera; e eles choravam. Decidiram então ir orar
ao poder celeste e buscar ajuda nos sagrados oráculos.
Sem mais demora, chegaram juntos à corrente do Cefiso,
ainda não límpida, mas que já sulcava o leito familiar.
Depois de nela irem buscar água e borrifarem as vestes
e a cabeça, voltam o caminho na direcção do santuário
da sagrada deusa. Os seus frontões viam-se amarelentos
de musgo imundo, os altares estavam de pé, apagados.
Ao chegarem à escadaria do templo, ambos se prostram
de cara no chão, e, temerosos, beijam as frias pedras.
Assim falaram: 'Se com preces justas se deixam vencer
e enternecer os deuses, se a cólera dos deuses se aplaca,
diz, Témis, de que modo a perdição da nossa raça pode ser
reparada e traz auxílio, gentilíssima, ao mundo submerso.'
A deusa comoveu-se e proferiu este oráculo: 'Saí do templo
e cobri a cabeça, desapertai as vossas cingidas vestes,
e lançai para trás das costas os ossos da grande mãe.'

Quedaram-se largo tempo estupefactos. Pirra é a primeira
a romper o silêncio e recusa a obedecer às ordens da deusa;
de voz trémula de medo, roga que lhe perdoe: é que receia
magoar a sombra da mãe ao andar a atirar os seus ossos.
Mas cada um vai remoendo e relembrando um ao outro
as palavras do oráculo, obscuras, de significado oculto.
Até que o filho de Prometeu tranquiliza a filha de Epimeteu,
e tais palavras diz: 'Ou a minha perspicácia me engana,
ou o oráculo não é ímpio nem exorta a sacrilégio algum.
A grande mãe é a terra: no corpo da terra, as pedras, julgo,
são os ossos; estas é que ela ordena lançar atrás das costas.'
A interpretação do marido impressionou a neta do Titã;
mas ela hesita no que esperar: a tal ponto não confiavam
ambos no conselho celeste. Mas haveria mal em tentar?
Afastam-se, cobrem a cabeça e desapertam as túnicas,
e arremessam as pedras, como ordenado, para trás de si.
As pedras (quem creria se não o atestasse a antiguidade?)
começaram a largar dureza e a rigidez, e, com o tempo,
a amolecer, e, uma vez amolecidas, a assumir uma forma.
Depois, quando cresceram e uma natureza mais branda
lhes tocou certa forma humana, ainda não muito clara,
podia perceber-se, mas como se esboçada em mármore,
ainda não acabada e parecidíssima com uma estátua a meio.
Porém, a parte deles de terra, impregnada de uma certa
humidade, transformou-se e passou a servir de carne;
o que era sólido e não podia dobrar-se torna-se ossos;
o que antes era veio, permanece com o nome de veia.
Em breve, pela vontade dos deuses, as pedras lançadas
pela mão do homem assumem o aspecto de homens,
e o que foi atirado pela mulher, reformata-se em mulher.
Por isso somos uma raça dura que se mata a trabalhar,
e fornecemos provas da origem da qual nós nascemos.



___________________________________________(I. 313-415)





OVÍDIO.
Metamorfoses, trad.: Paulo Farmhouse Alberto, Cotovia, 2007.